Ó Fortuna

Há uns 15 anos atrás, quando me apresentaram "O Fortuna", da ópera Carmina Burana, me contaram que se tratava de uma música ritual, atribuída a alguma seita da antiguidade que tinha o hábito de oferecer virgens em sacrifício. A música supostamente descrevia a agonia da vítima sendo perseguida, por isso é tão usada em filmes, como tema de cenas envolvendo violência e cultos demoníacos.

E é claro que eu acreditei. Há 15 anos atrás, se alguém me explicasse como funciona o pregão da bolsa de valores eu teria sérias dúvidas da veracidade daquilo. Mas se me contassem uma história absurda, com toques de filme de terror e muito sensacionalismo, eu morreria jurando que era verdade. Já hoje, acredito no poder das bolsas de valores, mas ainda tenho medo de aplicar meu dinheirinho.

Bem, a verdade é que sempre gostei muito daquela música, com aqueles acordes sombrios, e me sentia culpada por isso. Como eu poderia gostar tanto de uma música inspirada em algo tão repugnante? Sim, eu me odiava por causa disso, mas não estava nem aí pra o que eu mesma pensava. Essa minha indiferença a mim mesma me deixava muito intrigada.

Então, finalmente fui pesquisar a respeito, e eis o que descubro:

Carmina Burana é um conjunto de poemas, reunidos e musicados por Carl Orff entre 1935 e 1936. A obra é baseada em 24 poemas de uma coletânea medieval (supostamente de 1230), cujo nome original em latin é Carmina Burana: Cantiones profanae cantoribus et choris cantandae comitantibus instrumentis atque imaginibus magicis (Músicas de Beuern: melodias seculares para cantores e coros, cantadas com instrumentos e imagens mágicas).

Os poemas são atribuídos a estudantes e sacerdotes, quando o latin ainda era a língua mais utilizada pelos detentores do conhecimento (viajantes, estudiosos e teólogos) no Mundo Ocidental. Muitos destes poemas sugerem sátiras à Igreja, e algumas pessoas os vêem até como altamente eróticos, pois tratam da saída para o mundo de padres que estavam na clausura. O choque do mundo real com o pensamento angelical vindo dos mosteiros produziu textos carregados de encantamento e medo, ânsia e euforia.

E o mais famoso poema de Carmina Burana é justamente "O Fortuna", cujo texto aborda a sorte do homem, ora boa, ora má, provavelmente inspirado no choque de alguém com a imprevisibilidade da vida. Fortuna, em latin, significa Sorte, daí o termo Roda da Fortuna.


"Esta cantata é emoldurada por um símbolo da Antigüidade - o conceito da Roda da Fortuna, eternamente girando, trazendo alternadamente boa e má sorte. É uma parábola da vida humana exposta a constante mudança. E assim o apelo em coral à Deusa da Fortuna ("O Fortuna, velut luna") tanto introduz quanto conclui a obra..."

O Fortuna, --- Ó Sorte,
velut luna --- És como a lua
statu variabilis, --- Mutável,
semper crescis --- Sempre aumentas
aut decrescis; --- Ou diminuis;
vita detestabilis --- A detestável vida
nunc obdurat --- Ora oprime
et tunc curat --- E ora cura
ludo mentis aciem, --- Para brincar com a mente;
egestatem, --- Miséria,
potestatem --- Poder,
dissolvit ut glaciem. --- Ela os funde como gelo.

Sors immanis --- Sorte monstruosa
et inanis, --- E vazia,
rota tu volubilis --- Tu, roda volúvel
status malus, --- És má,
vana salus --- Vã é a felicidade
semper dissolubilis, --- Sempre dissolúvel,
obumbrata --- Nebulosa
et velata --- E velada
michi quoque niteris;--- Também a mim contagias;
nunc per ludum --- Agora por brincadeira
dorsum nudum --- O dorso nu
fero tui sceleris. --- Entrego à tua perversidade.

Sors salutis --- A sorte na saúde
et virtutis --- E virtude
michi nunc contraria --- Agora me é contrária.
est affectus --- Dá
et defectus --- E tira
semper in angaria. --- Mantendo sempre escravizado
hac in hora --- Nesta hora
sine mora --- Sem demora
cordum pulsum tangite; --- Tange a corda vibrante;
quod per sortem --- Porque a sorte
sternit fortem, --- Abate o forte,
mecum omnes plangite! --- Chorai todos comigo!


Ou seja, nada de gritos de terror e virgens desesperadas em desabalada carreira, embora a música também pudesse ser aplicada a esse contexto. O Fortuna parece ter a capacidade de sintetizar adrelina quando a ouvimos, e isso de certa forma justifica o seu uso recorrente em filmes e clipes. Afinal, não deixa de ser um recurso poderoso na edição dos vídeos, principalmente se os espectadores se deixam influenciar por tudo o que vêem e ouvem (como eu, há 15 anos atrás).

Decepcionado? Eu não. Fiquei aliviada com menos uma culpa para administrar, e até bastante satisfeita com a tradução de O Fortuna. É muito adequada para as diversas fases de nossas vidas, cheias de altos e baixos.

Então, agora vou distribuir Fortuna para todo mundo, de todos os gostos e tamanhos:
  1. Se você prefere a primeira história, com seitas macabras e virgens sensuais sendo perseguidas, eu sugiro essa versão pop-rock de Highland.
  2. Pra quem prefere pipoca com desespero, sugiro o vídeo de 300.
  3. Pra quem não tem paciência pra fru-fru, quer ouvir uma versão clássica da música e ponto final, clique aqui.
  4. Já se você é como eu, e quer mais é curtir o barato da música com tudo o que tem de direito, então por que não combiná-la com algo mais? Mas nada de sangue e terror. Eu gosto mesmo é de velocidade.
    Não era minha intenção fazer essa combinação, mas confesso que adorei. Sugiro você esperar que o vídeo seja todo carregado, e só então vê-lo, porque adrenalina em gotinhas não dá barato.

    Escolha a sua sorte, hac in hora, sine mora.



fontes:
http://en.wikipedia.org/wiki/Carmina_Burana_(Orff)
http://en.wikipedia.org/wiki/Carmina_Burana

2 comentários:

Gustavo Santos disse...

Acho que o contexto mais adequado pra você ouvir deveria ser quando programa ou dirige... Consigo conceber isso com grande realismo.

(sim, você, não eu :P)

Anônimo disse...

Qdo eu tinha apenas 1,30m o meu remorso era gostar de "Stairway to heaven" do Led e do Ilariê, heheh!