A Vida e o Luto Brancos


Minha mãe e tios costumavam nos contar que nas suas adolescências, nosso avô era um pai severo e de temperamento difícil. Isso parecia impensável para os netos, que apenas conheciam o avô de fala mansa, de temperamento conciliador e amoroso. Segundo uma das tias mais velhas, foi a minha avó quem mais contribui para essa mudança. Ele a adorava, e tinha por ela amor e admiração imensos, mas ela sabia que isso não era suficiente para apaziguar seu temperamento num momento de irritação. Então, quando alguma coisa o contrariava, e ele explodia, ela apenas esperava esse momento passar, e nada falava. Algum tempo depois, quando ele já havia esquecido o motivo da raiva, ela o chamava, e deitava sua cabeça no seu colo, com o pretexto de lhe fazer um cafuné. Nesse momento, ela conversava sobre o ocorrido, argumentava, e o convencia de que aquela atitude de nada resolveria o problema. Como não amar e admirar uma mulher assim?

Minha avó também fazia questão que os filhos se respeitassem e fossem companheiros uns dos outros. Eu percebo isso até hoje, quando vejo o zelo que minha mãe e tios têm uns com os outros. Meu avô era um homem de visão política e humanista, patriota, preocupado com o bem estar de todos, e defensor da educação. Enchia-se de orgulho sempre que um filho ou neto concluía seus estudos. Ele era nosso exemplo moral a ser seguido.

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Quando minha avó adoeceu, pediu à família que não vestissem preto após sua morte. Se desejassem vestir o luto, que fosse branco. Depois, chamou cada um dos seus filhos, genros, noras, netos, e marido, e despediu-se. Para cada um deles um conselho, uma lembrança, um carinho. Confortou a todos diante de sua própria morte. E foi-se, serena e imensamente amada.
Nessa época, minha mãe ainda era mocinha, e eu ainda não existia. Não puder ver estes momentos, mas revivia-os como se estivesse lá, sempre que a família os mencionava. O luto branco passou a ser uma tradição na família, embora nunca ninguém tivesse determinado isso. Simplesmente, se necessário, nos vestíamos de branco.

Muitos anos depois, meu avô adoeceu. Já com a idade avançada (89 anos, mas sempre muito lúcido, prático e disposto a dar um conselho e um carinho a todos), nunca deixou que sua saúde frágil interferisse no cotidiano da família, a tal ponto que alguns apenas souberam de sua condição a poucos dias de sua partida. Quando este dia chegou (15 de novembro, aniversário de Proclamação da República), ele foi levado para a sala principal da Casa Grande, no sítio, e foi rodeado por um grupo imenso de filhos, genros, noras, netos e amigos. E foi-se, sereno e imensamente amado.
Este dia eu presenciei. Um grande grupo de nós saiu às pressas da cidade para o sítio, e eu e alguns primos tivemos que pular a janela da sala, para não perdermos seu último olhar. Alguns dos mais jovens, ainda alegres porque estavam no melhor lugar de nossa infância, aos olhos do nosso avô adorado, enfim entenderam o que se passava. A igreja ficou repleta de pessoas de branco.

O tempo continuou passando, a família aumentando (hoje somos quase 150 netos e bisnetos), e todos crescemos nos referindo aos nossos avós como "pai" e "mãe", ou "padrinho João" e "madrinha Moça". Eles foram nossa melhor referencia familiar, o elo mais forte que poderia unir tantas pessoas, dispersas em tantos lugares, e conscientes de uma mesma coisa: somos filhos legítimos do amor, e por isso somos uma família grande, unida, e que se cuida.

2 comentários:

Gustavo Santos disse...

Como não ser uma pessoa digna, vinda de uma família assim?
Sempre achei que é esse tipo de instituição que norteia a formação humana e dá o lastro de caráter e civilidade a alguém.
Certamente seus netos terão a sorte de desfrutar de um exemplo de amor, cuidado, companheirismo e horadez, assim como você pôde ter.

Unknown disse...

Snif, snif... que lindo!