A Tarefa

Acordei tarde neste domingo, quase ao meio-dia. Me programei mentalmente para organizar uma montanha de papéis espalhados por caixas e gavetas (contas pagas, recibos, exames médicos, cartões de visita). Pra que pressa? A graça dessa tarefa seria personalizar algumas caixas, para separar os papéis por categoria. Seria um dia, agora resumido a uma tarde, de faxina criativa.

Eis que, antes de começar minha tarefa, leio algumas palavras de Clarice Lispector:

"Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser.

O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de ‘a protetora dos animais’. Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la.

[...] No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima. É pouco, é muito pouco."

Mudei de planos. Vesti minha armadura, empunhei meu arco e flechas, e fui à primeira livraria aberta. Queria desvendar segredos impensáveis, entender a alma humana, e ir mais longe do que jamais conseguira. Clarice e outros tantos me esperavam de braços abertos. E ouvi dentro de mim: "Ide, e sê feliz".

"Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma idéia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.

Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. [...] Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei."

Resolvi almoçar antes.

"Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto.

Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca [...]."

Voltei cheia de energia da minha tarde literária. Agora me sobram idéias para personalizar caixas, camisetas, paredes e sonhos. Poderia personalizar uma vida inteira, tantas são as idéias que me vêm à cabeça. Tarefa cumprida.

Nenhum comentário: